O papel da mulher na publicidade e na comunicação das marcas sempre foi equivocado. Na verdade, um festival de clichês que detonam a autoestima feminina propagados por criativos, em sua maioria, do sexo masculino, que há muito tempo dominam as agências e o marketing. Isso, felizmente, está mudando.
Há muitas décadas, campanhas sexistas e oportunistas recheavam revistas, folhetins, jornais, comerciais na televisão e na rádio. Em sua maioria, reforçavam o papel da mulher em posição de submissão, sem lugar de fala ou opinião própria e relevante. O famoso “bela, recatada e do lar” era a imagem da mulher que fazia as empresas lucrarem.
A “família margarina”, perfeita, com a mulher branca no papel de dona-de-casa feliz e realizada, apresentou ao mundo o ideal norte-americano de vida. Esse modelo de publicidade foi exportado para outros países, inclusive de origens raciais e culturais muito diversas dos Estados Unidos.
Com o crescimento das estratégias de criação e veículos de mídia, os estereótipos femininos foram aumentando em quantidade, mas não em qualidade: sempre limitando as mulheres a papéis de gênero, raça, corpo, classe e sexualidade, predefinidas em função do ideal masculino.
Como os estereótipos afetam a autoestima feminina
Um estudo de 2019 da consultoria 65|10 identificou diversos estereótipos femininos retratados em anúncios publicitários brasileiros, e encontrou velhas ‘conhecidas’ do público.
Quase onipresente, a mulher objeto. Apenas um corpo – geralmente escultural, em roupas reveladoras de suas curvas – usado como acessório para atrair atenção ao protagonista, que é homem, ou ao produto, que é dirigido ao público masculino.
A objetificação feminina é nociva para a sociedade e leva a transtornos de conduta sérios, como a violência contra mulheres, o tratamento desumanizado, a violação de seus direitos e, consequentemente, a redução ou aniquilação do seu amor próprio.
E o que dizer da supermulher retratada pelas marcas? A excelente mãe, exímia dona de casa, profissional poderosa, esportista, sexy e boa de cama, com cabelos, unhas, pele, maquiagem e corpo invejáveis. A mulher livre, leve e solta, dona do seu nariz… só que não. Uma imagem adulterada, hiper idealizada, que aprisiona mulheres dentro de um padrão surreal. Super humanos não existem.
Mulheres gordas são recurso de humor ou modelos em campanhas “antes-depois”, onde a vida só é feliz após o emagrecimento. Mulheres portadoras de deficiências só são contempladas por marcas que reforçam ou atendem às suas necessidades especiais. Mulheres maduras idem.
Mulheres negras e indígenas enfrentam o peso de estereótipos colonialistas. Ou são hiperssexualizadas, ou representadas como subalternas, ou sob o escopo da vulnerabilidade social e econômica, ou nem são contempladas na comunicação. Um erro histórico, social e comercial que, finalmente, começa a mudar.
Lésbicas e a comunidade LGBTQA+ são retratadas de forma afetada e caricata, quando o são.
A comunicação irresponsável, sexista, preconceituosa e excludente pode desencadear diversos sentimentos negativos nas pessoas, especialmente nas mulheres, mais sensíveis por natureza.
Inferioridade, inadequação e rejeição levam a quadros de ansiedade, depressão, transtornos alimentares, transtorno dismórfico corporal, síndrome da impostora, isolamento social, entre outras condições psicossomáticas limitantes. Isso sem falar nos procedimentos estéticos exagerados e cirurgias de risco.
Mas as consumidoras não estão mais engolindo os discursos ultrapassados. Movimentos feministas e de empoderamento feminino estão colocando em cheque as marcas, criando um marco de mudança, ao que parece, irreversível.
Os abusos da indústria cosmética sobre a autoestima feminina
Estudos dos elementos estéticos demonstram uma tendência histórica de intensificação do individualismo e de uma crescente sexualização da cultura. O corpo é visto como espetáculo e mercadoria. A idealização da juventude e a padronização de rostos, corpos e comportamentos, é amplamente impulsionada pela indústria da beleza, pela tecnologia, avanços farmacêuticos e procedimentos plásticos.
Aparência e moda passaram a ser elementos essenciais do estilo de vida humano, impactando a vaidade feminina de forma repetitiva e massiva, alavancando altos investimentos pessoais na construção e manutenção de padrões faciais e corporais.
Tudo à imagem e semelhança de uma minoria de modelos, influencers e arquétipos milimetricamente desenvolvidos pelo marketing de produtos e serviços da indústria da beleza. Porque, desde sempre, o belo vende.
Mas a que custo? Não falamos apenas do custo financeiro individual, mas da perda de amor próprio, da desvalorização da essência interior das pessoas e da anulação de características de personalidade únicas.
Atualmente, grande parte das mulheres associa automotivação e autoestima a uma condição que pode ser adquirida e vivenciada por meio de produtos, terapias, procedimentos estéticos e cirúrgicos. Cada vez mais buscam na estética uma resposta às suas questões existenciais e de bem-estar, muitas vezes ao custo da saúde e até mesmo da vida.
A beleza mercantil lucra em cima da necessidade humana por aceitação social, amor, inclusão, sucesso pessoal e profissional. Esse peso sobre as mulheres é ainda maior e mais cruel.
Assim como hoje já conseguimos reconhecer que a violência contra as mulheres tem várias faces, podemos falar sobre o abuso psicológico da indústria da beleza no segmento feminino.
Julgamentos midiáticos repetitivos e massivos sobre aparência, idade, vestuário, comportamento afetivo e posição socioeconômica levam a mulher a uma situação de enfraquecimento social e perda de energia vital.
Por mais que ela se cuide, nunca é suficiente. Ela está sempre no prejuízo. Para cada satisfação obtida, gera-se uma nova demanda – de cuidado, de produto, outro procedimento, novo tratamento, cirurgia.
Sabemos que a natureza da satisfação humana é instável, mas a pressão cultural e comercial tem sido impiedosa, cega às necessidades emocionais reais das mulheres.
A beleza passou a garantir o sucesso ou fracasso pessoal e profissional. A aparência física tornou-se um elemento de julgamento nas interações sociais, em relações cada vez mais efêmeras.
É urgente que empresas e marcas revejam sua postura e responsabilidade na construção da autoestima feminina e na abolição desse abuso psicológico. Todos os players da indústria da beleza devem participar de uma revisão de propósito para incluir em sua “missão, visão e valores” o combate à violência contra a mulher.
É urgente cessar de alimentar essa insatisfação contínua que leva as mulheres à busca de perfeição e padrões estéticos inatingíveis. A beleza tem que ser livre para se expressar na sua própria origem, forma, densidade e profundidade psicoemocional.
O preço atual é alto demais para a sociedade humana, imperfeita, diversa, gigante. E naturalmente bela.
As 5 dimensões que empoderam a autoestima feminina
A tecnologia digital e o crescimento estratosférico das mídias sociais aceleraram o processo de mudança das narrativas para as marcas, embora muitas ainda cometam os mesmos erros.
Se por um lado as plataformas coletivas também propagam pensamentos machistas, preconceituosos e radicais, por outro dão palco para a voz das mulheres e um público plural, diverso, com grande poder de escolha. E de compra.
Do ponto de vista das marcas, as mulheres além de decidirem grande parte das compras da família, também são as provedoras principais de milhões de lares. Conversar com essa mulher e entender suas necessidades emocionais e afetivas é uma questão de sobrevivência para a maioria das marcas.
O estudo “O que as mulheres querem” (What Women Want), da consultoria Kantar, destaca cinco dimensões que as marcas devem trabalhar para contribuir na autoestima das mulheres:
- Autonomia sexual e corporal: sentir-se no controle de seu corpo e à vontade com seus desejos e sexualidade.
- Liberdade de pensamento e expressão: ter suas ideias e pensamentos ouvidos e respeitados.
- Autonomia financeira: ser livre para tomar decisões financeiras com seu próprio dinheiro.
- Conexões sociais: ter uma rede de pessoas com quem pode contar.
- Representatividade e visibilidade: ver referências positivas de pessoas com as quais se identifica.
Ainda de acordo com esse estudo, “a comunicação das marcas terá um peso muito importante no papel da mulher nos próximos anos, e será essencial que elas trabalhem para promover a inclusão, a igualdade e a diversidade, gerando mudanças notáveis na sociedade latino-americana”.
Em um mundo cada vez mais globalizado e hiperconectado, o trabalho das marcas torna-se cada vez mais responsável na valorização e empoderamento das mulheres.
Não há mais lugar para o marketing indiferente às diferenças. As marcas devem trabalhar com conhecimento, competência e criatividade para impactar a cultura de indivíduos de forma positiva e afirmativa.
Dar visibilidade às diferenças não como problema, mas como solução para um mercado mais dinâmico e uma cultura de beleza livre e diversa, que influencie positivamente os negócios e a vida das pessoas.
Nesse sentido, fica a provocação. Não seria mais eficiente usar a autoestima feminina como bússola para direcionar o branding das marcas, e não o oposto?