Um dos maiores erros da lógica de consumo moderna está no valor atribuído à conveniência de poder comprar, usar e descartar. Lixo deveria ser exceção e não regra. Agora que estamos sendo confrontados com os danos em escala cada vez maiores, precisamos encontrar soluções à altura do grande problema que criamos. Entre tantas iniciativas, nas mais variadas esferas, são as lojas lixo zero que acompanham de perto a mudança acontecer na vida das pessoas.
Substituir sacolas plásticas por ecobags, fazer compras a granel e recusar descartáveis são atitudes que surgem como reflexo natural de um novo jeito de pensar. Deixamos de ignorar os impactos cumulativos dos nossos hábitos e começamos a, literalmente, fazer o dever de casa. As lojas lixo zero entram em cena nesse ponto: quando percebemos o absurdo de gerar um volume incessante de resíduos e vamos atrás de alternativas para reduzir a sensação de que estamos deixando rastros demais no mundo.
Aqui vale um lembrete: as escolhas individuais têm muita força, principalmente quando somadas, mas não podem alcançar a consistência de que necessitamos para ter a chance de resolver o desafio que temos pela frente. Novos rumos dependem de uma estrutura que os sustentem em termos de cultura, políticas públicas e organização das cadeias produtivas.
Uma loja lixo zero em cada esquina
Ainda precisamos procurar pelas lojas lixo zero. Pesquisar na internet ou perguntar a quem consome em lugares com essa premissa. Mas temos motivos de sobra para fazer com que esses negócios tenham a mesma acessibilidade dos pequenos mercados de bairro. A geração de resíduos no Brasil está aumentando, segundo coletados em 2020 pela Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Sólidos (Abrelpe). Cada brasileiro produz, em média, mais de 1kg de lixo por dia.
Se considerarmos que menos de 2% dos resíduos sólidos urbanos são reciclados no país, fica fácil concluir que grande parte dos materiais vai parar em aterros sanitários, ou até mesmo lixões. Um dos principais responsáveis por essa situação é o chamado plástico de uso único – embalagens que são descartadas poucos minutos depois que os produtos são consumidos.
Na tentativa de barrar o uso excessivo de embalagens plásticas, as lojas lixo zero oferecem alimentos a granel, barras sólidas para cuidados pessoais, além de diversos utensílios que ajudam a reduzir a geração de resíduos. A primeira loja a integrar oficialmente esse mercado foi a Bulk Barn, que abriu as portas em 1982, em Quebec, no Canadá. Depois de 30 anos, o negócio segue na ativa, com mais de mil produtos a granel disponíveis.
5 lojas lixo zero em destaque pelo mundo (e por aqui também)
A precursora mostrou o caminho, mas não foi de imediato que outras lojas lixo zero apareceram. Talvez pudesse ter acontecido mais rápido, mas a verdade é que as pessoas precisaram encarar o impacto gradativo da poluição causada pelos resíduos para assimilar a importância desse tipo de negócio. Na Europa, esse mercado começou a evoluir nos anos 2000 e, aqui no Brasil, a loja pioneira no ramo foi inaugurada em 2018.
Hoje, as lojas lixo zero mais experientes já servem como modelo para expansão desse mercado pelo mundo. A demanda por espaços maiores e pela abertura de filiais que muitas lojas identificaram mostra que esse modelo de negócios chegou para ficar. Isso significa que toda a cadeia produtiva – marcas, fornecedores de embalagens, distribuidores de produtos e os mais diversos prestadores de serviços – precisa estar preparada para caminhar no mesmo ritmo do varejo em relação à redução de resíduos.
Para que as lojas lixo zero possam cumprir o propósito a que se propõem, é preciso um trabalho em rede. Os exemplos de onde essa dinâmica está dando certo mostra que há muitas pessoas dispostas a desviar da rota tradicional.
La Maison du Zéro Déchet – Paris, França
Em 2016, durante um festival organizado pela organização Zero Waste France, surgiu a ideia: criar um espaço permanente onde as pessoas pudessem se reunir e encontrar recursos para implementar a abordagem lixo zero nos níveis individual, coletivo e político. Um ano depois, esse local ganhou nome e endereço: a La Maison du Zéro Déchet, localizada inicialmente no 18º arrondissement de Paris.
Não demorou muito até o lugar ficar pequeno para as atividades da La Maison du Zéro Déchet. A loja se mudou para uma estrutura cinco vezes maior, em outra região da capital francesa. Além da venda de produtos lixo zero, o espaço também promove eventos e conta com ateliês e um café.
A loja opera como uma associação, seguindo o modelo econômico de autossuficiência, em que as atividades comerciais possibilitam a realização de debates, conferências e oficinas gratuitas ou a preços solidários.
Mapeei 1VSP – São Paulo, Brasil
A Mapeei – Uma vida sem plástico foi a primeira loja lixo zero do Brasil, aberta em 2018 a partir de um financiamento coletivo. O projeto nasceu de uma ampla pesquisa sobre soluções justas e ecológicas que permitem reduzir o desperdício e barrar a poluição causada pelo uso excessivo de plástico.
Desde o início do negócio, a Mapeei organiza a operação da loja física e do e-commerce para gerar o mínimo de resíduos, atuando junto com as marcas parceiras na diminuição de embalagens, principalmente as plásticas. Quem compra na loja aprende a incorporar a abordagem lixo zero no cotidiano com o suporte de produtos realmente úteis.
Nos primeiros 18 meses de atividade, a Mapeei ajudou a desviar de aterros sanitários e lixões mais de 960 mil canudos plásticos, 24 mil absorventes femininos e 7,8 mil embalagens de shampoo.
Maria Granel – Lisboa, Portugal
Em 2015, poucos meses antes da abertura da Maria Granel, os fundadores da empresa ouviram pela primeira vez a expressão zero waste em uma reportagem gravada com Bea Johnson, uma das mais notáveis ativistas do movimento. Foi assim, assistindo a um dia de compras de Bea em uma loja a granel, que decidiram inovar no mercado europeu.
Um dos grandes diferenciais introduzidos pela Maria Granel foi o sistema BYOC (Bring your own container), em que as pessoas levam os próprios recipientes e os enchem com a quantidade de produto que desejam comprar. Com esse modelo, já conseguiram evitar o descarte de mais de 1 milhão de sacos plásticos.
Em 2018, a Maria Granel abriu uma filial em Lisboa, com instalações maiores, que abrigam a venda de alimentos orgânicos a granel e a primeira loja lixo zero de Portugal. Essa expansão permitiu à empresa integrar ao portfólio acessórios “plastic free”, além de produtos de limpeza, higiene pessoal e cosmética. São mais de mil itens disponíveis nas duas lojas e no e-commerce.
Mercado Lixo Zero – Florianópolis, Brasil
Em 2020, as sócias Nicole Berndt e Juliana Schulz se uniram a 12 marcas para abrir um mercado colaborativo e oferecer soluções a pessoas que desejavam reduzir a geração de resíduos na própria casa. A loja física em Florianópolis, Santa Catarina, logo ganhou a companhia de um e-commerce, que atende todo o Brasil.
No Mercado Sem Lixo só entram marcas que buscam minimizar o impacto em todo processo produtivo, desde a escolha dos ingredientes até a embalagem do produto. A loja, apelidada de MSL, categoriza os produtos com base no ambiente da casa em que podem ser utilizados, como cozinha, banheiro e jardim. Também há soluções para uso na rua, com crianças e pets.
Package Free – Nova Iorque, Estados Unidos
A Package Free foi criada em 2017, inicialmente como uma popup shop financiada pelas próprias marcas que venderiam produtos no espaço. A ideia surgiu de Lauren Singer, conhecida no mundo todo pela sua iniciativa de juntar, dentro de uma garrafa, os resíduos que gerou ao longo de oito anos.
O projeto tinha previsão de durar apenas três meses, mas a loja nunca mais fechou. Em 2019, a empresa buscou venture capital para criar produtos sustentáveis em escala, melhorando a acessibilidade para o público em geral.
Desde o primeiro dia, a Package Free questiona o status quo e busca provar que tem como construir e expandir um negócio com base em princípios que respeitam as necessidades ambientais e sociais. Parece que é realmente possível – e nada vai impedir essas empresas de multiplicarem as mudanças positivas que o mundo tanto precisa.