Mulheres de diferentes idades e origens com traços parecidos. Uma pele impecável, que não perde o aspecto jovem. Nada de olheiras, marcas de expressão, rugas, manchas ou qualquer outro tipo de característica que aprendemos a chamar de imperfeição. Essa imagem idealizada do rosto feminino não apenas reforça padrões de beleza, mas também levanta debates sobre práticas abusivas que fragilizam a autoestima para angariar benefícios comerciais.
Em tempos de selfie, a imagem nunca esteve tão em alta. Mais especificamente do rosto, que se tornou um dos principais alvos dos padrões de beleza atuais. Para as mulheres, uma face digna de curtidas nas redes sociais supostamente tem que eliminar todos os sinais da idade e das oscilações hormonais. Por outro lado, lábios volumosos, sobrancelhas arqueadas e maçãs do rosto salientes estão entre os atributos preferidos do momento.
Naturalmente, nenhum rosto reúne todos esses elementos. Mas, em razão de sucessivos abusos cometidos contra as mulheres na nossa sociedade, tendemos a acreditar que elas precisam perseguir um modelo de beleza ideal. Para ter um rosto feminino dentro do padrão, vale recorrer a filtros no Instagram, manipulação de imagens e procedimentos estéticos.
A tendência da “harmonização facial” está presente de tal forma no mercado que, quando a observamos ao lado do movimento pela beleza livre, percebemos uma grande incoerência. Se sabemos que a indústria precisa deixar práticas abusivas para trás, não faz sentido ainda não nos depararmos com discursos que convencem as mulheres de que elas precisam mudar seus rostos – às vezes, de forma drástica – para serem consideradas bonitas.
Aos poucos, nasce uma indústria que não tolera práticas abusivas
As abordagens exploradas pela publicidade já são conhecidas há muito tempo, mas ainda surtem efeito, especialmente sobre a autoestima feminina. Para não seguir como replicador de práticas abusivas contra as mulheres, o mercado da beleza precisa abandonar mensagens que dizem o que é melhor para elas. Estimular o consumo a partir da ideia de que existe algo de errado – e que um produto ou serviço oferece a solução para resolver esse “problema” – só perpetua comportamentos opressores.
No início do ano, o Grupo Boticário anunciou a criação do projeto Diversa Beleza, que prevê ações para combater a reprodução de estereótipos no mercado da beleza. Uma das medidas, que deve ser implementada até o começo de 2024, será a remoção de termos como “perfeita” e “normal”, além de outras palavras associadas a padrões de beleza, dos produtos vendidos pelas marcas do grupo (O Boticário, Quem Disse, Berenice?, Eudora, Vult, O.U.I. e a Australian Gold). Em 2020, o grupo já havia banido o uso do termo “clareamento”, pela associação com racismo.
Manipulação de imagens está com os dias contados
As práticas abusivas do mercado não estão apenas nos rótulos dos produtos. São as imagens divulgadas em redes sociais, tanto pelas marcas como por influenciadoras digitais, que geram o maior impacto para as mulheres. A verdade é que, mesmo sabendo a diversidade de fisionomias que existe no mundo, ou mesmo só no Brasil, ainda aceitamos que rostos sejam distorcidos para parecerem todos reproduções de um mesmo tipo de beleza.
A manipulação de imagens acompanha a história da fotografia, mesmo muito antes de existirem softwares como o Photoshop. Na publicidade, esconder imperfeições e alterar características físicas faz parte da produção de praticamente todas as campanhas – uma prática que, de tão frequente, se tornou normal. Agora, com inúmeros aplicativos de edição disponíveis para qualquer pessoa usar, além dos filtros prontos, as redes sociais se tornaram palco para um festival de fotos artificiais.
Diversos perfis nas redes sociais que exercem forte influência sobre as decisões das pessoas usam – e abusam – da alteração de imagens. Mas o mercado da beleza precisa seguir na direção contrária, barrando a divulgação de produtos e serviços associados a imagens irreais. Essa decisão requer premissas claras para a produção de campanhas e uma escolha cuidadosa das parcerias com influenciadores digitais.
Em 2006, a Dove viralizou um vídeo publicitário em que criticava a manipulação excessiva de imagens. Depois de 15 anos, a marca voltou a se posicionar sobre o assunto com a campanha Reverse Selfie, abordando a problemática da distorção de fotos na era digital. A iniciativa faz parte do Projeto Dove pela Autoestima, criado em 2004 pela empresa para contribuir com a formação de jovens mais confiantes com a própria aparência.
As duas campanhas da Dove que tratam o tema foram dirigidas pela Ogilvy, uma das maiores agências de publicidade do mundo, e o trabalho em conjunto parece ter gerado mudanças positivas para o mercado. Em abril deste ano, o escritório da empresa de mídia em Londres anunciou que não vai mais realizar campanhas de marcas com influenciadores digitais que distorcem e retocam imagens.
Harmonização facial: padrões de beleza custam caro
Talvez o sucesso recente da harmonização facial seja a maior representação de discurso que se apoia em práticas abusivas. Esse procedimento estético promete uma verdadeira transformação a partir de técnicas como aplicação de ácido hialurônico, toxina botulínica, bioestimuladores de colágeno e fios de tração facial. Os resultados, percebidos rapidamente, são capazes de “apagar” os sinais de alguns anos de vida. Se for o desejo da cliente, também é possível chegar perto de um rosto no estilo Kardashian.
O valor pago varia conforme o produto e a quantidade utilizada – além, é claro, da pessoa escolhida para fazer o procedimento, que pode ser dermatologista, dentista ou esteticista. Mesmo com cifras que ultrapassam os R$30 mil, a demanda não para de crescer. Não teria nada de errado com tamanha procura, se as razões fossem razoáveis. Mas o problema está na pressão exercida sobre as mulheres para que elas tenham determinada aparência, o que as leva a acreditarem que precisam fazer o procedimento.
A febre da harmonização expõe raízes profundas de padrões estéticos que se proliferam na mesma proporção das selfies, gerando um custo alto para a autoestima das mulheres. Mas a era da influência pode ser se desenrolar de forma muito diferente e deixar marcas positivas, desde que as empresas não sejam mais complacentes com práticas abusivas, principalmente na forma de comunicação.